30 años del Mercosur | Qual é a do Mercosul?

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por Celso Amorim¹

A pergunta que serve de título a esta breve nota me foi feita por uma jornalista brasileira, enquanto nos deslocávamos para o heliporto em Ouro Preto, em dezembro 1994, ao final da Cúpula em que foi assinado o famoso protocolo sobre a estrutura institucional do Mercosul e se estabeleceram as bases da União Aduaneira.

Tendo participado ativamente da construção desse projeto, é uma pergunta que até hoje me faço, sobretudo quando percebo certas visões equivocadas.

De certa forma, estive presente nesse processo, “antes mesmo que começasse”, para parafrasear um personagem do famoso filme de Orson Welles, “O Cidadão Kane”. Quando José Sarney e Raúl Alfonsín ensaiavam os primeiros passos da aproximação Brasil-Argentina, eu trabalhava no recém criado Ministério da Ciência e Tecnologia, como assessor do ministro Renato Archer, primeiro titular dessa pasta. Chefiei, então, a delegação brasileira a uma reunião em Foz do Iguaçu/Puerto Iguazu, em 1985, em que se discutiu, pela primeira vez, a cooperação entre os dois países em biotecnologia.

Na ocasião o chefe da delegação argentina, Embaixador Junovsky, e eu não nos limitamos ao tema técnico que tínhamos pela frente. Falamos também da importância de entendimentos na área nuclear, que, anos mais tarde, resultaram na criação da ABACC,um modelo de instrumento em matéria de criação de confiança em uma área especialmente sensível.

Já no início dos anos 90, como diretor da área econômica do Itamaraty vi a ideia de a integração florescer, com envolvimento crescente do Uruguai e do Paraguai. Paradoxalmente, a grande potência do norte contribuiu para esse avanço, com a proposta da “Iniciativa para as Américas”, idealizada pelo Presidente Bush sênior. A proposta, que tinha por objetivo se contrapor à “Fortaleza europeia”, nos pôs na disjuntiva de nos unirmos de forma mais sólida para negociar em conjunto ou sucumbir à tentação de buscar vantagens individuais de forma fragmentada, seguindo o esquema “hub and spoke”, preferido por Washington. Até hoje, me lembro da surpresa do negociador norte-americano, quando insistimos em mudar a configuração da mesa de reunião em uma sala do Departamento de Estado. Ao formato pentagonal proposto, contrapropusemos um rearranjo, que claramente demonstrasse que não se tratava ali de uma negociação entre cinco países, mas sim de um modelo 4+1, em que os quatro países que viriam a conformar o Mercosul falassem com uma única voz. A necessidade de manter essa frente comum acelerou a opção pela criação de uma União Aduaneira, adotada no Tratado de Assunção, em 1991, e nos acordos de Ouro Preto, em 1994.

A opção por uma integração mais profunda, até hoje marcada por falhas e perfurações, não foi casual. Ela espelhava os valores e ideais que inspiraram os promotores iniciais da integração no sul do nosso continente, sobretudo a consolidação da paz e da democracia, vista como uma tarefa comum.

Diferentemente das áreas de livre comércio, as uniões aduaneiras implicam decisão política transcendente em busca de um destino comum. O exemplo contemporâneo mais bem sucedido (apesar de recuos como o Brexit) é o da União Europeia. Historicamente, sabemos da importância do Zollverein, na construção da unidade alemã. Mesmo que não vislumbremos, a curto prazo, ir tão longe, todos os que falamos em “Pátria Grande” temos a responsabilidade de zelar pelos instrumentos e mecanismos que a tornem possível.

Não foi um caminho fácil. Ao longo do processo que levou a Ouro Preto, houve a tentação de criar um “Mercosul em duas velocidades”, em que os dois países menores teriam uma participação diferenciada (e, implicitamente, inferior) na construção do Mercosul. Felizmente, a visão política prevaleceu sobre considerações econômicas de curto prazo.

Os fundadores do Mercosul percebiam o alcance amplo da iniciativa. A ideia de que a nova entidade pudesse ser o embrião de uma integração que abraçasse toda a América do Sul, como uma área de paz e cooperação, crescentemente integrada, se refletiu na escolha do nome: Mercado Comum do Sul (e não do Cone Sul, como se costumava dizer). Propostas como a da Area de Livre Comercio Sul-americana (ALCSA), feita pelo presidente brasileiro em uma reunião do Grupo do Rio, em Santiago, em 1993, caminhavam nessa direção, mesmo levando em conta as limitações e dificuldades geradas por visões distintas da maneira como os países deveriam inserir-se no comércio internacional. Alguns jornalistas perceberam o sentido político da proposta e se referiam à ALCSA como uma alternativa à ALCA, a versão de Bill Clinton da Iniciativa Bush, que então se esboçava.

O acordo quadro entre o Mercosul e a CAN, em 2004, lançou as bases comerciais em que repousariaa Comunidade Sul-americana de Nações (CASA), formalmente aprovada em Cuzco eposteriormente rebatizada e fortalecida, como UNASUL. Os avanços em áreas como coordenação política, mediação de conflitos, saúde e defesa, entre outras, foram notáveis. Tais progressos, entretanto, não teriam ocorrido sem o impulso dado pelo Mercosul, indiscutivelmente o “motor” principal da integração sul-americana.

A força do Mercosul decorre, em grande parte, do fato de que ele se apresenta ao mundo como um bloco. Seria muito triste ver o Mercosul retroceder a uma mera área de livre comércio, de menor consistência política. Tal recuo sinalizaria o abandono do grande sonho de uma verdadeira União Sul Americana, impulsionada por seu polo mais dinâmico. Não se constrói uma Pátria Grande com ideias pequenas.


¹ ex-Ministro das Relações Exteriores do Brasil (1993-1994 e 2003-2010) e ex-Ministro da Defesa (2011-2014).